Pós-Segunda Guerra, gênios se perguntaram “teatro para quê, para quem  e por quê?”. Fizeram história. Seis décadas depois, numa sociedade  pós-Guerra Fria, pós-dramática, pós-moderna (e de todos os outros  pós-possíveis e imagináveis), de atentados terroristas, de novo levante  de juventude retrógada (mesmo quando supostamente revolucionárias)  e  onde tudo se descarta a toque de caixa, o diretor de 
Gargólios compartilha com o público a inquietação: “para que e qual o teatro de nosso tempo?”
Pelo conteúdo e forma utilizados por Gerald Thomas, qualquer texto  nos moldes da lógica dominante não dá conta de comunicar a experiência  (boa ou má, a depender do receptor), que é assistir a um de seus  trabalhos. Deste modo, os melindres que tinha em classificar meus  artigos caíram por terra. A um teatro que não se encaixa em nenhuma  forma, por que tentaria escrever uma crítica?  Com esta obra, tentativa  melhor de diálogo é, sem dúvida, a elaboração de um texto reflexivo que  aborde questões extra-cena, única forma de não limitar (injusta e  indevidamente) toda a potencialidade artística existente neste  espetáculo.
Com 
Gargólios, Gerald não apresenta apenas um espetáculo,  mas também um projeto de vida, em uma cena na qual fala não só do seu  artesanato teatral, mas de todo e qualquer Teatro. O diretor da London  Dry Opera Company não ignora a intolerância política e religiosa de  nossos tempos e ao por esta questão em pauta numa peça com dramaturgia  fora dos padrões, Gerald nos oferece a possibilidade de refletir sobre  inúmeras questões da atualidade, dando autonomia para que cada  espectador complete a história com questões que lhe toquem.  Particularmente, 
Gargólios me levou a refletir sobre uma  espécie de fundamentalismo que todos conhecem, mas preferem tapar os  olhos e fingir que não o vêem: o fundamentalismo artístico.
Estava ansioso na poltrona como há muito não ficava. Afinal, pela  primeira vez assistiria a um espetáculo de uma das principais  referências da história da cena teatral brasileira. A expectativa era  grande. Quando menos esperávamos, eis que Gerald irrompe em cena. Eu e a  maioria do público presente esperávamos que ele fizesse agradecimentos,  falasse de suas expectativas e saísse de cena para dar início ao  espetáculo. Queríamos o Trivial? Melhor ir a outro lugar.  Sem que  percebamos, o espetáculo já começou. O diretor faz um longo número de  contrabaixo (improvisado a partir da trilha criada por John Paul Jones),  já gerando uma inquietude no público, que pela primeira vez na noite é  tirado de sua zona de conforto: como assim, o diretor em cena? Mas e a  peça? E a ilusão teatral? Aliás, e a beleza da cena geraldiana? Eis que  ela surge ao levantar da cortina.
Uma cena impactante, em que se vê uma mulher nua, pendurada, tendo ao  fundo uma cenografia que aponta os escombros do World Trade  Center.  São imagens que da forma como postas em cena possibilitam uma  fruição estética.  Era o que esperava ver. Aliás, mais do que eu  esperava, pois esta “degustação” não se configura em  exibicionismo  artístico e eu não imaginava uma cena de grande formalismo que já ao ser  posta se relacionasse com seu tempo. Mais uma vez, desinformações de um  jovem artista.
Se o “prólogo” não é convencional, não é o conjunto da dramaturgia que o seria.
Gargólios apresenta  uma história, fragmentada, não linear, não dramática (do ponto de vista  que não segue uma estrutura textual da peça bem feita e que possibilite  catarse nos espectadores), mas ao mesmo tempo repleta de dramaticidade.  Não trágica, mas repleta também de tragicidade. Confuso? De modo algum.  É que talvez me falte bagagem para saber concretizar em palavras a  recusa do teatro geraldiano em se filiar a alguma forma (moldada  anteriormente seja lá por quem).
Na história da peça, super-heróis nos escombros do World Trade Center  vão parar no psiquiatra, numa imagem tem forte simbologia: num mundo em  escombros, em que as catástrofes naturais, políticas e os atos  individuais insanos (como o massacre na Noruega, que surpreendente mente  chegou a ser motivo de piadas infames no facebook, assim como o  massacre na escola da periferia do Rio de Janeiro) nos deixam cada vez  mais desorientados (“I don´t undestand, Sir”, repetem os personagens),  nem mesmo super-heróis podem nos dar suporte. Tivesse os direitos da  Marvel e/ou da DC Comics, Batman, Super-homem, Lanterna Verde e Homem  Aranha certamente estariam no palco, impotentes e perdidos, seja pela  queda das Torre Gêmeas, seja pelas crianças que morrem de fome e de AIDS  no continente africano (e não só nele). Os impotentes super-heróis de 
Gargólios pedem ajuda a um psicanalista que se apóia em vermelhos saltos altos.  É a desconstrução de qualquer segurança. Mais uma forma de Gerald desconstruir qualquer referencial em que possamos tentar nos estabilizar.
Gerald nos traz um projeto de vida, pois põe em cena um espetáculo  que vai além de questões temáticas. Através da forma e do conteúdo, ele  nos dá a possibilidade de refletirmos sobre a própria arte. “O que é  arte?” talvez seja uma das perguntas mais recorrentes do mundo  contemporâneo: 
Gargólios é uma obra de arte. É uma obra de  arte? É. Sem dúvida. Não serei eu a negar que gosto não se discute.  Entretanto, uma coisa são gostos, outras são fatos. Gostar ou não gostar  não é critério para “atestar” (ou não) a qualidade de um trabalho. E é  fato este espetáculo ser uma obra artística.
Tenho a impressão que de todas as artes, o teatro é a mais abstrata,  mesmo para seus praticantes. Parece-me que é a única prática em que os  artistas só admitem o seu fazer como a única forma possível,  contribuindo decisivamente para a formação de públicos que também pensem  de forma fundamentalista, repudiando um espetáculo porque não se  encaixa naquela forma que gosta de assistir.
Não acredito que olhemos um quadro ou uma escultura como  entretenimento, emitindo juízo de valor e comparando pintores e  escultoras de escolas diferentes.  Picasso é menos pintor do que Da  Vinci? Benedito Calixto menor do que Tarsila? Insisto (num recurso  repetitivo à la
Gargólios) Nosso gosto (que deve existir,  felizmente) não é (pelo menos não deveria ser) critério para definição  de qualidade de uma obra. Podemos gostar mais de Da Vinci do que de  Salvador Dali, mas isso não quer dizer que um seja melhor que o outro.  No meio teatral, por deficiência de muitos formadores, raramente  aprendemos a desenvolver esse olhar plural, verdadeiramente artístico.  Daí a existência de diretores, atores e espectadores fundamentalistas.
Devido à existência deste fundamentalismo, pensei que assistiria a um  abandono em massa. Felizmente, fui injusto. De onde estava, consegui  contar 3 ou 4 xiitas  indo embora. Talvez não julgassem a peça como um  bom teatro; talvez não a julgassem nem mesmo como arte teatral (ah, os  juízes). Uma pena que tenham mentes estreitas. Estes fundamentalistas  lembraram-me um trecho de 
O Inimigo do Povo, de Ibsen: “o  público não precisa de ideias novas. Do que ele precisa é das boas e  velhas idéias recebidas”. Ibsen escreveu essa fala no final do século  XIX, num teatro moderno para a época, que falava de pessoas  conservadoras, dito por um personagem retrógado e conservador e para um  público que subia nas cadeiras, protestando contra as questões  levantadas pelo dramaturgo. Mais de um século depois, as coisas não  mudaram muito. Ibsen hoje é clássico, portanto antigo. Se Ibsen é  antigo, aqueles que ficaram horrorizados com ele são o que? E o que  dizer dos que abandonaram a apresentação de 
Gargólios?
Quanto ao processo de montagem, Gerald deixou de lado um espetáculo  pronto para ser apresentado no Brasil para começar tudo do zero, saindo  da zona de conforto para a zona de risco. Mas “o que vem a ser a arte  que não se nutre do risco? Não é nada”, afirma o diretor no programa de  Gargólios. Perfeito. Foi no risco que Ibsen, Tchekhov, Strindberg,  Stanislavski, Brecht, Guarnieri, Boal, Bob Wilson, Mchoukine, Zé Celso e  tantos outros gênios surgiram. Certamente, muitos anônimos também  arriscaram, mas fracassaram em suas experiências. Ainda assim, são muito  mais valorosos do que os célebres (ou não) que insistem em permanecer  na zona de conforto.
Além de não ter assistido trabalhos de Gerald anteriormente, li pouca  coisa a respeito de suas produções. O suficiente para identificar  procedimentos comuns ao longo de sua obra mas que  não são se configuram  como sinais de comodismo e sim como demonstrações de valores artísticos  que o diretor acredita e os quais utiliza para comunicar o objetivo  maior de suas produções. Um exemplo é uma declaração de um estudo de  Flora Sussekind e David George em que eles apontaram que “o registro de  voz, sua manipulação técnica e sua disponibilização - como um elemento  estruturante da escritura dramatúrgica e cênica dos espetáculos – é um  aspecto fundamental do teatro de Gerald Thomas”. Isto é nítido em 
Gargólios,  mas não de forma a constituir virtuosismo ou finalidade, mas sim um dos  meios para comunicar as questões temáticas do espetáculo.
Impossível não destacar os atores e o distanciamento crítico adotado  pelo diretor. O elenco é uniforme, nenhum intérprete destoa, revelando  se pertence (ou não) a escolas de interpretação diferentes uma das  outras. Essa uniformidade de elenco, rara mesmo em coletivos  brasileiros, é mais um dos pontos a valorizar nesta obra. Todos são  atores-performers com exímio trabalho corporal e vocal.
Quanto à abordagem temática, Gerald se apropria de um conteúdo de  tragédia moderna, sem procurar nem a piedade e terror da tragédia  clássica (segundo Aristóteles), nem o melodrama barato. A fruição  estética e inúmeros recursos que não nos permitem esquecer que estamos  em um teatro não nos permitem fugir para as lágrima alucinógenas. O  teatro de Thomas não é um teatro da ilusão (como o diretor e os  contra-regras expostos em cena bem provam). Como o professor José da  Costa bem expõe em 
Teatro Brasileiro Contemporâneo, “Thomas não  trabalha um teatro como representação do real”. Eis aí mais um dos  diferenciais do diretor: óbvio, fácil e cômodo seria falar do real  apelando para um suposto realismo e/ou naturalismo em cena. Mas aí  Thomas geraria no máximo um mau documentário. É no trabalho gerado pela  busca de uma forma não convencional para falar de sua época que o  diretor cria, fazendo arte e diferenciando-se uma vez mais da média dos diretores brasileiros.
Imperdível o espetáculo. Para abrir os horizontes de qualquer artista e entender a potência desta arte que praticamos. 
Gargólios é  uma oportunidade imperdível para aprendermos a refletir social e  artisticamente. A pseudocrítica do tipo “não gostei porque eu....” mais  do que nunca aqui não tem vez e só atesta a mediocridade do sujeito que  se expressa desta forma.
Gargólios é para gostar ou não gostar?  Pode até ser, mas principalmente para aprendermos a justificar o gosto  ou não gosto nos porquês da proposta da peça, buscando as fundamentações  apoiados na 
práxis testemunhada e não na nossa vã filosofia de wikipédia.
Sai do teatro muito feliz e aliviado por finalmente ter assistido  Gerald Thomas. Quase cometi a ignorância de por opção não assistir a  Paulo Autran. Levo no peito a frustração de não ter assistido Raul  Cortez. Em relação a Gerald, gostando ou não, deste fundamentalismo não  morrerei.
Lembro-me quando em aula na Universidade, Luiz Fernando Ramos (professor e crítico da Folha) disse que 
Anti-Cristo (de  Lars Von Trier) deveria ser assistido para entendermos o que é uma obra  de arte. Não importa se gostamos ou não, mas não podemos negar que este  filme é uma obra de arte. Somente após assistir ao filme (e, através de  critérios subjetivos, não gostar), entendi o que ele queria  dizer:gostando ou não, não se pode negar que 
Anti-Cristo é uma obra de arte. Assim como 
Gargólios.
Vida longa a 
Gargólios? Vida longa ao teatro de Gerald  Thomas. Na careta cena brasileira, faltam mais chacoalhões como os dele.  Que sirva de referência principalmente aos amadores e estudantes.  Afinal, é principalmente nas mãos deles que estão as possibilidades de  renovação da cena teatral.
A Gerald Thomas, e todo o elenco de 
Gargólios, meu muito obrigado.
  
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