Quando          as cortinas do Teatro Municipal do Rio de Janeiro se abriram, no dia 2          de abril de 1987, o público carioca viu uma encenação          insólita da ópera O Navio Fantasma, de Richard Wagner. Isso          porque a direção do espetáculo foi do anglo-brasileiro          Gerald Thomas, conhecido por suas montagens revolucionárias. Considerado          o "enfant terrible" do teatro brasileiro, Gerald era à          época amado e odiado pela ousadia de suas montagens como Quartett,          Quatro Vezes Beckett, Carmem com Filtro, Electra Com Creta, onde juntava          com maestria, minimalismo, dadaísmo, a mitologia grega, os arquétipos          junguianos, Marcel Duchamp e outras estrelas da vanguarda artística          mundial. Um diretor pós-tudo, Gerald Thomas fazia (ainda faz) nas          suas montagens, a síntese da cultura ocidental judaico-cristã.          E por falar nisso, a sua concepção deste Navio Fantasma          começava com a ação transportada para o presente,          1987, e o cenário era a famosa Documenta de Kassel — Exposição          de Arte Moderna que acontece de cinco em cinco anos, no Museu Documenta,          na cidade de Kassel, Alemanha.       
                                                         
          Estilo neoclássico
          Para dar o clima monumental do Museu, de estilo neoclássico, o          cenário de Daniela Thomas ocupou todo o palco e mais os dois camarotes          nas laterais inferiores do teatro. Além disso, o palco foi preenchido          com reproduções de obras de Andy Warhol, do pintor e escultor          francês Marcel Duchamp e outros artistas do século —          alusões a elas, representadas pelos atores e ainda, vagões          de um trem e uma linha de montagem de uma fábrica e colchões.          Os personagens, os fantasmas do navio, são figuras da história          alemã do pós-guerra, prisioneiros, não apenas judeus,          mas de todas as épocas.
          E a principal novidade desta montagem: a heroína Senta não          se atira no penhasco no final da peça, como na versão original,          mas joga-se contra o Muro de Berlim e morre eletrocutada. No entanto,          apesar das inúmeras referências à Alemanha de Hitler,          o público não viu suásticas e os prisioneiros não          tinham aquelas faixas características dos judeus. Quanto ao elenco,          o barítono Carmo Barbosa foi o Holandês Errante no primeiro          elenco e Jeshua Hecht, do Metropolitan Opera House de Nova York fez o          personagem no segundo elenco; Sabine Hass da Ópera de Viena encarnou          Senta no primeiro elenco e a soprano Elisabeth Payer Tucci no segundo          elenco. Dalan foi interpretado pelo baixo Boris Bakow do Festival de Bayreuth          e pelo baixo brasileiro Vladimir Kanal, da Ópera de Frankfurt,          no primeiro e segundo elencos, respectivamente.
          Por acaso no Brasil
          Filho de mãe inglesa e pai alemão, Gerald Thomas nasceu          no Brasil, mais exatamente no bairro de Botafogo, no Rio de Janeiro, por          acaso, numa das viagens de negócios do pai e passou a infância          em trânsito entre o Brasil e Londres. Aos 15 anos, voltou definitivamente          para Londres, onde ficou até os 25. Foi nesse tempo que mergulhou          na biblioteca do Museu Britânico e leu tudo que tinha direito. Começou          estudando a textura dos mapas históricos e em geral lia muita história,          especialmente a do Brasil, relacionada com seus personagens estrangeiros          que por aqui passaram como Villegagnon e o Rio, Nassau e o Nordeste. "Sempre          tinha na mesa, aberto, o livro de Descartes", conta ele. No mais,          lia tudo, de Koestler a Jung, Beckett, os gregos, estudava futurismo,          dadaísmo, concretismo. "Aliás, li tudo o que todo mundo          lê, nada diferente, apenas lá tem coisas que aqui não          tem, por exemplo, manuscritos de Jung, Lênin e coisas do tipo, que          você não vê por aqui".
          Sobrevivência? O dinheiro vinha do Conselho Britânico de Artes,          porque a essa altura Gerald era um artista plástico em quem os          críticos londrinos apostavam: era ilustrador da Página de          Opiniões do New York Times e tinha trabalhos publicados em livros          de arte cotados na praça londrina. Daí, a bolsa do Conselho,          já que há um abismo separando Brasil e Inglaterra, fora          o oceano que nos separa: lá o governo valoriza e reconhece seus          artistas. "O Brasil é o ponto escuro do Sol", diz Gerald,          "mas isso é culpa do afastamento cultural provocado pela elite          brasileira. É por isso que eles me chamam de colonizador, porque          venho de fora. Mas se Wagner vivesse e fosse convidado para fazer música          aqui no Brasil, é evidente que ele não faria samba, mas          alguma coisa relacionada com toda sua bagagem cultural".
          Pintura pura
          O amor pelo teatro despertou, quando viu a montagem de O Balcão,          de Jean Genet, com direção de Victor Garcia, no Teatro Ruth          Escobar, em São Paulo. Nessa epóca ele já desenhava          suas figuras curvadas, sombreadas e inseridas num quadro que seriam, afinal,          a base para seus "quadros cênicos", marca registrada de          suas montagens. Fora isso, escrevia "uma espécie de ensaios          hierônimus-boschnianos sobre teatro" que saíam numa          revista inglesa: New Statement, de linha centro esquerda, meio marxista,          segundo diz. "Quando vi o espetáculo de Victor Garcia, descobri          que aquele podia ser o caminho do meu trabalho em teatro. Esteticamente,          minhas peças são pintura pura. Já a ópera          é a combinação de tudo isso: literatura, música,          pintura".
          De volta a Londres, Gerald começou a se dedicar ao teatro —          foi criar o setor experimental do tradicional National Theatre. Mas ao          mesmo tempo era brasileiro, quizás latino-americano e por aqui          a ditadura corria solta. Assim, entra para a Anistia Internacional como          representante do Brasil, mas logo desliga-se, já que a entidade          só se interessava por presos ditos de consciência e não          pelos que faziam luta armada. Entrou então para o Tribunal Russel,          onde conheceu exilados como Gabeira, Lizt Vieira, César e Cid Queiroz          Benjamim. Àquela altura Gerald confessava não estar engajado          em nenhum movimento político. A sua luta é via teatro.
          Revendo Wagner
          Amigo de Beckett, já montara até aquela data dezoito textos          do autor. Em Nova York, cidade onde residia na época, diz que —          apartamento montado mesmo tem lá, aqui, vive num quarto emprestado          na casa da mãe — dirigiu o Grupo La Mamma Theater for the          New York. Mas no Brasil, começou a fazer teatro em 1985. Estreou          com Quatro Vezes Beckett, quando ganhou o Molière Especial, sendo          que o Mambembe de Melhor Figurino foi para Daniela Thomas. Foi quando,          pela primeira vez, abalou as estruturas de uma facção do          teatro carioca, também chamada de besteirol. Na mesma linha dos          seus espetáculos anteriores, onde fez "a reciclagem de todos          os avanços cênicos destes últimos trinta anos, a arqueologia          do saber", como escreveu o crítico paulistano Edélcio          Mostaço, Gerald Thomas se aproximou de um dos companheiros preferidos:          Richard Wagner, mais especialmente na ópera O Navio Fantasma.
 "Eu          amo Wagner, porque é uma música onde predomina a racionalidade.          É o primeiro compositor estruturalista, é o Levy Strauss          da música, é um alquimista da razão, é o maior          influenciador da música moderna hoje". E Gerald é apaixonado          por música: "Música é tudo para mim". Depois,          porque viveu na Alemanha, o alemão foi sua primeira língua,          e seus mestres foram escritores e filósofos alemães.
 "Para          mim a Alemanha é social, econômica e racionalmente o laboratório          deste século para todas as transformações. Ela faz          a antropofagia da sociedade, caminha diferente do resto do mundo".          E, além disso, segundo Thomas, Wagner é um personagem que          está no purgatório, ele mesmo foi um mito do nazismo, foi          instrumento da propaganda nazista como Nietzche. Finalmente, uma razão          concreta: ele e o Fernando Bicudo, diretor da ópera do Teatro Municipal          do Rio de Janeiro, já pensavam nesta possibilidade.
          Com a liberdade só permitida aos artistas, Gerald também          revisita a obra de Wagner e a vê com a perspectiva do tempo. Daí          porque a ação é transportada para a atualidade. "O          Navio Fantasma vai ser uma montagem histórica em todos os sentidos,          porque deverá ser a primeira de uma série que imprime o          teatro na ópera. Nada que deva dar um ataque cardíaco, mesmo          nos mais aficionados. Só irão ver uma versão mais          inteligente, que considera os elementos que nos levaram até os          tempos presentes, no caso das artes cênicas, como Wagner também          o havia feito. Aliás, os próprios aficionados e puritanos          de Wagner hoje em dia teriam sido os mesmos, que nos idos do século          passado, execravam Richard Wagner".
          O Ensaio da Ópera
          Chego ao teatro às 11 horas da manhã do dia 25 de março          de 1987, o ensaio já começou, mas por sorte hoje é          um dia especial: os solistas estão chegando ao Brasil e os figurinos          começam a ser realizados, assim como o cenário. Ou seja,          a produção da ópera está na arrancada final.          Studart, o administrador do teatro me leva a um camarote. O maestro Eugene          Kohn ensaia com a orquestra. Gerald está no camarote próximo          ao palco, fala com os músicos em espanhol, inglês e o intérprete          e encarregada do ensaio do Coro traduzem, para o alemão e italiano.
          Nos corredores a encarregada do ensaio do Coro reúne o pessoal:          dá instruções sempre em português e inglês.          Na passagem para o palco, durante um pequeno intervalo, cruzo com o Gerald          e um integrante do Coro no corredor. Ele comenta as últimas da          imprensa carioca sobre hipotéticos problemas dele com o Coro. "Gozado          o jeito que a imprensa comenta o meu relacionamento com o Coro",          ele me diz. "Não é nada disso. A verdade é que          os acaricio e eles me acariciam. Não tem nada daquilo que saiu          na Domingo (revista do Jornal do Brasil que sai aos domingos): "A          que ponto chegamos".
          Tudo bem, valeu o desabafo, mas já percebi que vou ter que conferir          isso com alguém do Coro. O que, aliás, faço em seguida,          mas é bom registrar que a ópera de Wagner foi o prato principal          da imprensa carioca durante pelo menos quinze dias. Eles adoram uma fofoca.          O que diga-se, não é meu caso. Aliás, como vocês          verão na seqüência, vou até sofrer por causa          dessa divergência fundamental, justamente com esta matéria.
          Bem, cheguei ao palco, onde o iluminador ajeita a lâmpada acoplada          à partitura do piano. E o que pensa dessa concepção          de O Navio Fantasma o preparador e pianista do Teatro Municipal, Sérgio          Nogueira? "Muito meticuloso, ele é um diretor atento para          a presença do detalhe. Há óperas em que o compositor          especifica todo o trabalho e os diretores seguem à risca. Aqui          não. Ele já colocou a sua concepção do espetáculo,          apesar de ainda não a termos visto integralmente".
          Salva pela Senta:
 é          o Navio Fantasma
          Os solistas continuam a chegar e se encontram no palco, nos corredores.          Importante salientar que eles são italianos, norte-americanos,          alemães, que vêm de vários países do planeta          e que se reencontram no Rio de Janeiro, para mais uma montagem da ópera          O Navio Fantasma. Volto para o camarote. Resolvo começar a escrever          anotações para a matéria. Mergulho no release que          me deram sobre a história da ópera.
          Viajo, enquanto anoto impressões, lembranças da entrevista          com o Gerald na noite anterior, no Teatro do MAM, antes de ver Electra          Com Creta. Quando acabo de escrever a palavra "prisioneiro",          alguém na platéia chama o Carmo Barbosa, que está          bem próximo ao meu camarote, na platéia. Num segundo, decido          entrevistá-lo e vou a caminho da porta. Descubro que está          trancada. Tento abrir, não consigo. Estou presa? Prisioneira?
          Volto e verifico as possibilidades de um salto para a platéia.          Rejeito a idéia. Vejo as duas solistas que vão fazer a Senta:          Sabine e Elisabeth. Chamo a atenção delas e não sei          em que língua falar. Assim penso em inglês e francês          e acabo falando "prisioneira" com sotaque alemão. É          uma verdadeira babel o Teatro Municipal do Rio de Janeiro.
          Elizabeth entende e vai lá dentro, tomar providências. Eu          a ouço falando em italiano, ou seja, nenhuma das línguas          anteriores. Finalmente o Studart abre a minha porta. Ele explica que afinal          eu não estava trancada, a porta podia ser aberta desde que eu puxasse          o fecho antigo da maneira certa. Bom, agradeço em alemão:          Danke Schon, não me perguntem por quê. Quer dizer, eu sei          porquê: eu não sabia quem era quem, quem falava qual idioma          entre os solistas vindos de diferentes partes do mundo e Elisabeth tem          um tipo nórdico. Só depois, fiquei sabendo que ela é          italiana, de pais austríacos.
          Ironia do destino: como em O Navio Fantasma — a ópera, fui          libertada pela Senta. Acho que Wagner baixou no meu camarote. Meu conselho:          sempre que você se julgar prisioneiro de algum lugar, ou situação,          não se perturbe tanto quanto o Holandês Errante, desde que          tenha uma, ou duas Senta por perto.
          O Holandês Errante?
          Não, só o Fernando Bicudo
          Na seqüência, Elisabeth está conversando com um jovem          louro, de longos cabelos encaracolados, queimado de sol, gente, uma beleza.          Seria o próprio Holandês Errante? Daqui para frente penso          que tudo pode acontecer. Não, era apenas o Fernando Bicudo, diretor          da Ópera do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, jovem empresário,          economista, diretor de teatro (dirigiu Orfeu) e um dos organizadores da          Petrobrás International, presidente de uma Fundação          de Artes de Nova York, a Art American Foundation.
          Quando eles terminam de conversar, peço uma entrevista que ele          concede, ato contínuo. Entro no seu escritório e ele que          diz o que pensa dessa montagem, já que é um dos pais da          criança, pela ousadia. "Não tem dúvida de que          o espetáculo vai dar o que falar. Mas não esqueçamos          que Debussy foi vaiado quando apresentou L'Après Midi d'Un Faune          na ópera de Paris pela primeira vez".
          Bicudo acredita mesmo que, historicamente, o Rio de Janeiro tende a ser          a póxima capital do mundo em importância cultural, lembrando          que antes de Nova York, Paris era o ponto de encontro das vanguardas do          mundo e começou com o clássico, com Diaghilev comissionando          trabalhos de Stravinsky, Prokofief, Nijinski. "É preciso ousar,          usar a liberdade de criar, porque a liberdade é o que o artista          respira". Daí que ele vê o Rio com o a próxima          cidade do triângulo: uma das três cidades do mundo que todos          querem conhecer. Na virada do milênio, ele acredita que o Rio deve          atrair jovens do mundo inteiro. "Nós temos a facilidade",          ele diz, "de trazer os momentos artísticos, temos todas as          condições de ser a nova capital do mundo, juntamos beleza          e cultura. O brasileiro tem uma identidade, um legado cultural ao qual          não damos valor. Nós temos o potencial de desenvolvimento,          o mais forte que há no mundo. Com a energia que existe no Rio de          Janeiro dá para fazer a pré-estréia do século          XXI".
          Para tal, Bicudo acredita, que seja a hora dos "guerrilheiros do          teatro", os contestadores se unirem para forçar a entrada          no cenário artístico brasileiro dos verdadeiros criadores          da arte, ajudá-los a ter liberdade para criar. E foi pensando nisso          que criou a Associação dos Amigos do Teatro Dalal Aschar,          e começou a participar do Teatro Municipal. "A Dalal estava          desesperada e me convidou para ser uma espécie de assessor. Tanto          que nunca fui nomeado". E Fernando começou, conseguindo dinheiro          para o teatro. Chamava seus amigos do exterior para cantar aqui e posteriormente          conseguiu apoio da Petrobrás. Além disso, como patrono do          Metropolitan Ópera House, conseguiu agitar bastante a programação          do Municipal do Rio.
          Para a montagem de O Navio Fantasma, por exemplo, conseguiu um grande          apoio da Petrobrás, que até aqui nunca havia subvencionado          qualquer espetáculo. "Não recebemos um tostão          do Estado, aliás, tivemos um tremendo boicote do governo Brizola,          que nos impediu de usar a Central Técnica para a produção          da ópera".
          Intervalo para o lanche
          O diretor concede ao elenco uma hora para o almoço e todo mundo          dispersa. Alguns, para casa e outros, para um lanche rápido. Saio          sozinha e vou a um dos quiosques maravilhosos que tem no Rio, quiosques          de sucos ali perto do teatro, para um lanche. Encontro com um integrante          do Coro. Sem perguntar nada ele me fala das dificuldades da realização          de uma montagem deste porte e de como as coisas estão correndo          bem isso em função da junção Gerald com o          Eugene Kohn: "binômio muito simpático, com quem é          uma delicia trabalhar".
          Em seguida chegam os dois referidos. Eugene pergunta que suco estou tomando.          Abacaxi, respondo. Ele pede graviola e em seguida outro, de abacaxi. Brindamos          ao sucesso da ópera: tintim com suco de abacaxi, o que, aliás,          combina com o país tropical. Rápidos, eles voltam para o          teatro. Me lembro que na entrevista na noite anterior, o Gerald me havia          dito que ele dorme pouco, umas quatro horas por noite, mas em compensação          se alimenta muito bem. Percebi. O ritual da tomada do suco não          durou dez minutos. Fim do intervalo. Volta ao trabalho.
          Com Daniela na platéia
          De volta ao teatro, converso com Daniela Thomas, ex-mulher de Gerald Thomas,          principal colaboradora de suas montagens, na primeira fila da platéia.          Ela é cenógrafa e figurinista deste O Navio Fantasma e me          explica que, seguindo a linha dos seus trabalhos anteriores — Carmem          com Filtro, Quartett, Quatro Vezes Beckett, Electra Com Creta —,          aqui também ela elaborou os figurinos — roupas e artifícios          cênicos — segundo uma dupla qualidade: familiaridade e estranheza.          (E que maravilha conversar com gente inteligente e culta). "Não          é surreal, porque não falo do sonho do outro, alheio ao          espectador. Eu diria que são roupas alusivas a situações          já vividas. Você olha e diz: isso me lembra alguma coisa          que já vi, mas não sei definir bem. Ou seja: ela é          familiar e estranha a um só tempo".
          Segundo me conta, ela procura sempre nas suas criações o          impacto único, ou seja, elabora suas roupas com economia de detalhes.          Para criar os figurinos deste O Navio Fantasma, por exemplo, partiu do          fato primeiro: Wagner que é um mito, que foi usado como tal, mitifica          em O Navio Fantasma o assassino e o judeu errante, que é o Holandês          Voador, já que o personagem que aparece de sete em sete anos, personifica          o mito do eterno retorno, da história que se repete. Partindo desse          princípio, ela chegou a uma idéia que norteou o espetáculo:          juntando o mito de Wagner com este eterno retorno, pensou num figurino          e cenário simbólicos, da estética da opressão.          "A estética nazista é o neoclássico. Aliás,          o neoclássico é também o preferido de Stalin, os          regimes de esquerda e direita são muito parecidos assim como o          Egito: eles usam ângulos retos". Daniela lembra que duas qualidades          acompanham os regimes repressivos: "o gigantismo e a solidez das          construções".
          E lembra da lenda segundo a qual, o Speer, arquiteto preferido de Hitler,          teria dito ao ditador: "Vou construir prédios que sobrevivam          a catástrofes". Hitler respondeu: "Pelo amor Deus, não          teremos catástrofes. E mesmo que haja, o Terceiro Reich vai se          perpetuar para todo o sempre". Ela conclui, lembrando que depois          da derrocada de Hitler não sobrou um só prédio do          Speer para contar a história, ainda que alguns anteriores aos deles          tenham sobrevivido.
          Primeira pausa: entra em
          cena a equipe de produção
          Sabine chega à platéia e Daniela me pede um tempo, para          mostrar os figurinos da Senta — primeiro e segundo atos. Sabine          olha e Daniela justifica a escolha dos modelos, tipo dos tecidos escolhidos,          mostra o desenho do sapato e pergunta que tipo ela prefere: mais cavado,          menos, que tipo de salto. Sabine dá as coordenadas, aprova os desenhos          e em seguida entra a equipe da produção: tiram as medidas          do salto que Sabine usará em cena. Minúcias, detalhes, perfeição          e tudo muito tranqüilo. Sabine é uma mulher de muita classe,          sóbria, silenciosa.
          Daniela me explica que a produção dos cenários e          figurinos está toda atrasada em função de uma espécie          de boicote que eles sofreram por razões políticas. "Na          realidade, tudo isso deveria estar sendo feito na Central Técnica          de Inhaúna. Daí estarmos trabalhando com essa violência,          rapidez".
          Falando da sua filosofia de trabalho na criação dos figurinos,          me explica que o mais econômico em termos de formas e detalhes é          fazer roupas alusivas. Assim, as roupas dos prisioneiros que vão          aparecer em cena serão alusivas, representativas de todas as pessoas          oprimidas, presidiários, prisioneiros de campos de concentração,          lembrando os oprimidos de todas épocas, mas sem alusão aos          detalhes muito marcantes que permitam ser identificados. Por exemplo,          não terão as faixas usadas pelos judeus.
          E de qualquer forma, como nada é unilateral, ela conclui que é          muito difícil dizer se o opressor é o mal absoluto e o oprimido          o bem absoluto. E mesmo quando ela representa o cenário —          a Galeria Documenta —, não pesquisa, por exemplo, a planta          do prédio da famosa galeria alemã para seguir à risca          seu traçado. Ao invés disso, construiu um "espaço          nazi-stalinista" e colocou ali arte moderna — objetos alusivos          também — à exceção de um, que é          fiel à Marcel Duchamp.
          Mas as novidades não terminaram: na ouverture, após a saída          dos visitantes, quando as luzes se apagam, os personagens, os fantasmas,          saem de um trem. Ou seja, além do navio, vai haver em cena nesta          montagem de Gerald e Daniela Thomas um trem e uma carcaça de um          Volkswagen — o carro do povo. As cores usadas serão preto          e cinza e sempre com aparência de usados. Para conseguir este efeito          Daniela usa um truque: as roupas são mergulhadas no chá.
          Entrevistando os cantores
          num camarote
          Como quero entrevistar todo mundo num só dia — e que dia          maravilhoso, cheio de maravilhosas conversas, mágicas —,          convoco parte do elenco que não está em cena ensaiando e          vou para um camarote junto com o intérprete, porque afinal não          sou de ferro. Começo com Sabine Hass e fico sabendo que é          a primeira vez que ela trabalha com Eugene Kohn e, evidentemente, com          Gerald Thomas, mas ela me conta que já representou Senta, nada          menos que duzentas vezes nos principais teatros de todos os países          do mundo.
 É          considerada pela crítica mundial — e isso não é          ela quem me diz, é o diretor — como a mais perfeita Senta          da atualidade. "Eu trabalho com diretores modernos e antigos, procuro          me adaptar a todos. Se o diretor me apresenta uma idéia nova eu          aceito". Aponta entre os seus compositores preferidos Wagner, Strauss,          Fidelio, Beethoven. Sabine é austríaca, nasceu em Viena          e canta desde os 16 anos (tinha à época 37), tendo começado          sua carreira em Munique.
 "Meu          teatro favorito é o de Munique", Sabine me diz e ainda: que          não gosta de divas e prima-donas. Acima de tudo, considera-se uma          atriz procurando se entregar ao máximo no palco. "Quando há          mais empatia com o público, aí me sinto realizada".          Ainda que tenha interpretado o papel de Senta muitas vezes — considera          esta personagem de Wagner uma mulher muito forte, que dá a vida          pelo homem amado —registra que foi em Filadélfia, em setembro          de 1986, sob a regência de Ricardo Mutti, que ficou absolutamente          fascinada pela inovação introduzida pelo maestro.
          Lembra que houve uma sintonia absoluta entre maestro e intérprete          e ela se sentiu realmente "tocada no coração".          "Foi uma paixão total", diz emocionada. Seus próximos          projetos: em 1988, participa do Festival de Ricardo Strauss para comemorar          o aniversário do compositor em Munique, quando deve interpretar          uma série de óperas do compositor. Em setembro de 1988,          vai abrir o Festival do Metropolitan de Nova York com o Amor de Danae,          ópera que considera rara, dificílima. Fora sua carreira          de cantora de fama internacional, Sabine Hass é uma mulher casada          e "muito feliz" — o marido também é cantor.          Eles moram em Viena com dois cachorros que adora. "Não tenho          filhos, porque acho que eles ficariam muito tristes com a minha ausência.          Se os cachorros já sentem falta...".
          Na piscina do Glória
          olhando o mar
          Somos expulsas do teatro pelo Gerald, que me diz que os outros cantores          estão reclamando que também querem ser entrevistados. Explico          que vou entrevistar todos, estou apenas começando, mas de qualquer          forma, resolvemos mudar de lugar. E combinamos ir para o Hotel Glória,          onde eles estão hospedados. Quando saio do teatro me perco deles          — evaporaram no ar. Decido ir direto para o Glória. Eles          chegam dez minutos depois e o intérprete me conta que eles foram          ao quiosque de sucos. "Parecem crianças", ele me diz,          "eles querem tomar todos. Adoraram estes sucos brasileiros".          Estou curtindo à beça, por isso me identifiquei tanto com          este pessoal — também me sinto criança.
          Estamos agora na piscina do Glória, olhando o mar. Converso com          Elisabeth Payer Tucci, 41 à época, a Senta do segundo elenco,          metade austríaca, metade italiana, filha de pais cantores. "Meu          pai formou-se cantor de câmara no Rio de Janeiro". Ela mora          com o marido e dois cachorros na Ilha de Elba (aquela mesmo do exílio          de Napoleão), no meio de muito verde, flores e evidentemente o          mar. "Não consigo ficar longe do mar". Personalidade          forte, ainda que risonha e meio moleque, Elisabeth me diz que não          pretende fazer uma Senta sonhadora, mas uma mulher real, pés no          chão. Além desse personagem, diz que se identificou com          a Brunhilde e Siegfried da ópera As Valquirias, de Wagner, que          interpretou no Metropolitan Opera House. Mas sua primeira ópera          foi no Teatro de Arena de Verona, quando fez Turandot, em 1978. Interpretou          ainda, Nabuco e Macbeth, de Verdi. Admite gostar de papéis fortes,          que exigem do intérprete toda a sua alma. E ainda, de papéis          femininos com as características de todas as mulheres do mundo.          Por isso, sua predileção por Santuzza, da Cavalaria Rusticana,          de Rossini, que tem estas características. Mas para desempenhar          bem os papéis no palco, Elisabeth precisa estar de bem com a vida,          com o marido, do contrário não tem condições          de se apresentar. Fora o canto, a natureza, o mar, os cachorros, Elisabeth          confessa gostar de belos carros.
          Aflorar a alma
          Jeshua Hecht tinha 61 anos, cantava há 33 e já representara          o Holandês Errante nada menos que 150 vezes. Formado em literatura          pela Universidade de Nova York, Jeshua é reformado do Exército          americano. E foi durante sua estadia lá, que cantou pela primeira          vez. Seu dèbut foi na ópera Manon Lescault, de Massinet,          fazendo o papel do pai de Degreux. Além do Hollander, gosta muito          dos papéis de Yago em Otello, de Verdi; Scarpin, da Tosca de Puccini;          Don Giovanni, de Mozart e Johann, da ópera Salomé, de Strauss.          Jeshua é casado com uma pianista e compositora, que naquele ano          de 1987 tinha duas peças sendo apresentadas em Frankfurt, onde          eles residiam desde 1984: um musical e um ballet. Tem quatro filhos entre          20 e 30 anos, é professor de canto e é sua primeira vez          no Brasil. Anotando sua preferência por personagens que possam fazer          "aflorar a alma", Jeshua considera o Holandês Errante          muito espiritual, muito intenso, um homem muito sofrido, que tem alguma          coisa de Cristo, muito desesperado. Ele mesmo confessa ser uma pessoa          muito espiritualizada, acredita em Deus e na vida eterna: enfim, crê          que há alguma coisa no homem que o diferencia do animal.
          Um jovem maestro
          Converso agora com o maestro Eugene Kohn, 34 anos, muito jovem, que adora          o Brasil, porque se sente rejuvenescido: desde a primeira vez, sentiu-se          em casa e pretende voltar muitas vezes. "Fiz muitos amigos na orquestra          e no Coro, quando estive no Brasil, para fazer O Trovador, de Verdi e          senti que queria voltar. Fiquei muito feliz quando o Bicudo me convidou          para reger Madame Butterfly, de Puccini, minha segunda ópera aqui          no Brasil".
          Só reclama quando chega muito em cima da hora e não tem          tempo para ensaiar como gostaria. Surpreso com o alto nível da          orquestra e do Coro, Eugene está um pouco mais tranqüilo desta          vez, já que está tendo tempo. "Gostaria de chegar a          um som especial e para isso são importantes pelo menos quatro horas          de ensaio por dia com orquestra e Coro". E agora, ele acredita estar          conseguindo trabalhar individualmente, já que o Bicudo providenciou          para que todos viessem com antecedência.
 "Trabalhando          individualmente, chego ao valor real de cada um, o que não ocorre          quando o tempo é exíguo e as defesas não permitem          que cada um se mostre integralmente, mas agora as coisas estão          correndo maravilhosamente". Pergunto se a premência de tempo          é um problema brasileiro e Eugene diz que não: acontece          também na Alemanha, por exemplo, onde a estação lírica          é muito intensa, mas já não ocorre no Metropolitan.          Quanto à esta montagem do Gerald Thomaz, está na sua opinião,          com um elenco formidável e ressalta uma voz que sobressai pela          beleza do timbre e pela sintonia com ele: a do barítono Carmo Barbosa.
 "Carmo          é uma pessoa maravilhosa cantando ou não cantando, mas quando          canta, acredito que sua verdadeira identidade, sua mais íntima          expressão, venha à tona. Sua voz é de padrão          internacional, e sem dúvida é uma das mais belas do mundo".          Eugene confessa preferir óperas que tenham mensagens que possam          ser aplicadas à própria vida. Entre elas aponta: Norma,          de Bellini; Fidelio, de Beethoven; La Bohème, de Puccini; La Traviata,          de Verdi. No plano pessoal Eugene Kohn reconhece ter mudado muito nos          últimos anos. Hoje seu grande objetivo é ser "verdadeiramente          feliz" e está conseguindo realizar isso só fazendo          o que gosta. "Isso permite que eu fique mais feliz e em conseqüência,          torno minha família mais feliz. Posso ficar mais tempo perto deles,          viajar com eles, etc".
 À          época, Eugene morava em Nova York e era regente do Metropolitan          Opera House, a casa de óperas mais importante do mundo. Começou          como pianista e acompanhou, entre outros cantores, a célebre Maria          Callas. Pavarotti levou-o para a Itália, onde aprendeu italiano          e fez Lucia de Lammemoor, de Donizetti. Em 1975, voltou para os Estados          Unidos, onde trabalhou até os anos 80 em companhias menores. Debutou          no Metropolitan com Gioconda, com Renata Scotto fazendo o papel central.
          Até então, havia regido em Roma, Stuttgart, Bonn e considerava          importante não ficar só num país, mas viajar pelo          mundo e particularmente, achava fundamental estar no Brasil, sendo responsável          pela direção musical deste O Navio Fantasma. Isso porque          acreditava que o Rio de Janeiro tendia a se transformar num dos grandes          centros culturais do mundo, revivendo a década de 30 quando tinha          lugar no cenário internacional da música. Importante para          ele é conseguir trazer à tona talentos e toda a carga de          sentimentos dos outros, dos intérpretes e músicos, que tem          sob sua direção. Depois da temporada carioca, Eugene seguiria          para Tóquio, onde ia dirigir concertos e quatro orquestras diferentes          com Plácido Domingo.
          De volta ao Teatro Municipal
          para entrevistar Carmo Barbosa
          Enquanto espero o Carmo, verifico como, afinal, o compositor foi inspirado          a escrever sobre este famoso Holandês Errante, personagem central          desta ópera. E isso eu leio no livro do maestro, que está          esquecido sobre uma cadeira no palco. Registre-se que já é          outro dia e estou novamente no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, nos          bastidores da montagem de O Navio Fantasma, de Wagner, para continuar          a maratona de entrevistas.
          Consta que Wagner teve seu primeiro contato com a história do Holandês          Errante no verão de 1838, através da novela de Henrich Heine:          Memórias de von Schanabelwopsky. "Este tema me atraiu de tal          forma", escreveu mais tarde no seu Eine Mitleilung an meine Freunde,          "deixando uma marca de tal forma indelével, que no devido          tempo me vi compelido a trabalhá-lo". Deixo o livro e vou          finalmente entrevistar Carmo Barbosa, que me encontra justamente no momento          em que Eugene vai para o piano".
 "Não          esqueçamos de que ele foi acompanhante de Maria Callas e é          regente do Metropolitan, a maior casa de ópera do mundo",          diz Carmo, enquanto atravessamos o palco, a caminho do seu camarim no          andar de cima, para a entrevista. E afinal quem é este jovem —          36 anos, à época, barítono dramático tão          elogiado não apenas por críticos do mundo todo, mas especificamente          agora por Eugene Kohn: "Você viu no ensaio ele me jogava beijos"          e por Gerald Thomas, o diretor desta montagem, que confessa "não          posso ouvir o Carmo cantar, começo a chorar, não sei o que          é". Carmo dá uma gargalhada maravilhosa, meu Deus que          potencia de voz! "É sim, ele chora, não consegue falar,          me ensaiar. E ficou pasmo quando soube que eu tinha vindo de Agudos para          o Rio, de avião. Ele acha incrível ter avião no interior          de São Paulo".
 É          verdade, ele explica que pegou o avião em Bauru, foi até          São Paulo e de lá veio para o Rio. Enfim, ninguém          pode negar, foi um difícil trajeto. Mas então é isso,          Carmo Barbosa nasceu em Agudos, a 350 quilômetros de São          Paulo, filho de uma cantora, "ela fazia a Verônica na Semana          Santa e eu adorava vê-la cantando", tem ascendência italiana          e portuguesa. O pai, português, mas filho de italianos e a mãe,          filha de italianos, enfim, a família toda ligada em musica erudita.          "Meu pai tinha dois álbuns, um da Traviata e outro de Il Pagliaci,          de Leoncavallo e eu cresci neste ambiente musical de gente que adorava          cantar". Começou a cantar muito cedo e em 1973 participou          do Primeiro Festival de Campos do Jordão, organizado pelo maestro          Eleazar de Carvalho. Os maestros estrangeiros convidados ficaram de tal          forma impressionados com sua voz, que organizaram sua ida para os Estados          Unidos. Providenciaram bolsa, e logo Carmo partia para Nova York para          ficar dois anos — acabou ficando cinco na Manhattan School of Music.
 "Minha          facilidade com línguas também me ajudou muito. Nunca tive          problemas, aprendo rapidamente". Registre-se que ele fala inglês,          francês, italiano, alemão. "Alemão eu fiz na          Goethe Hause, na Suíça". "E há ainda uma          certa capacidade histriônica que tenho e que talvez tenha sido responsável          por uma equiparação rápida com os americanos, com          uma formação anterior mais intensa". Paralelamente          à escola, ele participava de concertos, de espetáculos de          ópera na New York City Opera que é uma companhia itinerante          que viaja pelo país. "E preciso viver na Alemanha para entender          o espírito tedesco, a diferença do latino", ele diz.          "É preciso ter vivência para poder aprender a maneira          diferente que o alemão tem de enfocar a vida, e a pessoa não          consegue fazer uma bela performance do repertório alemão          se não entender este espírito".
          Carreira e cachês
          de nível internacional
          Carmo viveu dois anos na Suíça, dois na Alemanha, respectivamente          cantando na Ópera de Zurich e na Ópera de Lunenburg. "O          repertório que desenvolvi ali foi fantástico: Elixir do          Amor, de Donizetti, que me deu a chance de me apresentar com o Pavarotti          em Filadélfia, que tem o Teatro de Ópera mais antigo dos          Estados Unidos". Aliás, para julho ele já havia agendado          o Festival de Wagner de Varsóvia, na Polônia, e ia aproveitar          para dar um giro pela Itália, que define como um estado de espírito:          "arte, beleza, saúde, atmosfera maravilhosa". Carmo vivia          há quinze anos do canto lírico, tinha cachês de nível          internacional e admitia que poucos cantores brasileiros têm este          privilégio.
 "Sobre          esta montagem ele afirmou: "Cantar grandes papéis wagnerianos          e em especial, o Holandês, é uma das maiores experiências          humanas", citando o crítico norte-americano Norman Bailey.          Concordando com ele, Carmo considera que este personagem é de fato          uma das mais completas experiências humanas para um artista. "Momento          sagrado em que voce deixa o plano meramente terreno para passar para um          nível superior". Não consegue dizer objetivamente se          acredita na vida eterna: considera que a vida, esta própria existência,          tem ela mesma, capacidade de revelar aspectos transcendentais. Acostumado          a participar de montagens de óperas contemporâneas, considera          genial o enfoque feito por Gerald Thomaz de O Navio Fantasma, já          que pretende ser "uma reavaliação crítica de          um determinado momento histórico, onde as forças do drama          tradicional adquirem com o trabalho dele, uma realidade plástica          extremamente convincente. Não acredito que haja o perigo dos conservadores          e tradicionalistas não se sentirem atraídos pelo charme          e wit da concepção dele".
          Drama musicado
          Entre seus personagens preferidos, cita o protagonista de Woizzeck, de          Alban Berg, obra dodecafônica, das mais difíceis do repertório          mundial, em função do volume vocal, aliado a uma intensidade          dramática. "Wagner faz drama musicado. A voz passa a fazer          parte do processo sinfônico. Enquanto na maioria dos compositores,          a orquestra acompanha o cantor, em Wagner, orquestra e canto fundem-se          num só corpo. Um só corpo direcionado no sentido de mostrar          as idéias do compositor".
          Daí que é preciso, segundo Carmo Barbosa, ter um volume          vocal muito grande para cantar as obras de Wagner. Entre suas obras preferidas          Carmo cita justamente O Navio Fantasma; O Barbeiro de Sevilha, de Rossini;          Yerma, de Villa Lobos, que fez em première mundial no Rio; a Tosca,          de Puccini; Aída de Verdi; Ártemis, de Nepomuceno; Porgy          and Bess, de George Gershwin; Werther, de Massinet; Die Beiten Schnitzen.          Entre as contemporâneas fez de Zador, tres óperas em première          mundial: A Hand of a Bridge, Yehe, The Magic Chair. Fez ainda inúmeros          concertos como a Nona Sinfonia, de Beethoven; Réquiem, de Brahms;          Sinfonia dos Dois Mundos.
          Carmo considera o público do Rio muito fiel, sendo ele o único          artista brasileiro que canta duas temporadas este ano. No palco ele se          sente em casa, mas fica sempre nervoso, porque é sempre a primeira          vez. "É alguma coisa muito orgânica, talvez porque o          palco é continuação do ato de amor". Além          de cantar, que é sua vida, Carmo gosta, quando pode, de descansar          na sua casa de campo em Agudos, onde sai de barco para pescar e esquece          do mundo. Literalmente. E também quando tem disponibilidade, nos          fins de semana, vai a uma discoteca, porque ninguém é de          ferro, e então, curte um rock.
          Apesar de ter gosto musical bastante amplo, reconhece que quando precisa          de um relax, que ele chama de yoga-musical, recorre a um Debussy ou um          Ravel. Reconhece que não teria chance de ter feito no exterior          este vasto e difícil repertório: no Brasil ele canta papéis          pela primeira vez, ritual usado no mundo da ópera e que ele explica.          "Para se cantar em grande teatros como no City Ópera de Nova          York, por exemplo, o número de vezes que se fez aquele determinado          personagem, é fundamental. E aqui no Brasil eu faço papéis          importantes pela primeira vez, ou seja, não há esta exigência".          Recentemente, Carmo foi convidado para fazer o Rodrigo, no Don Carlo de          Verdi, na Ópera de Paris. Como estava no Brasil, recusou o convite,          já que o prazo era muito exíguo: tinha de sexta a domingo          para ensaiar e estrear na segunda e, ainda, por ser a primeira vez que          faria o personagem. Adepto do trabalho esmerado, Carmo Barbosa gosta de          fazer bem ou não fazer. Descobriu que ao invés de ficar          correndo de um lugar para outro, mais importante é fazer menos          trabalhos, mas bem feitos, do que chegar ao topo rápido, sem o          devido vital supporting. Como divide seu tempo entre o Rio de Janeiro          e o exterior, tem duas acompanhantes: no Brasil, Eliane Caram e nos Estados          Unidos, Margareth Singer, que à época estava na Ópera          de Hannover. Naquele momento estava muito interessado no trabalho de Gerald          Thomaz e do Eugene. "A regência dele é genial".          Fora isso, está muito feliz com esta equipe de pessoas extremamente          motivadas e de altíssimo nível.
          Finalmente, o Coro
          De volta ao palco, Thomaz ensaia o Coro, este mesmo que todos dizem que          é tão importante. Converso com Silea Stopato, secretária          da Associação do Corpo Coral, que faz a Maria neste O Navio          Fantasma. Ela começa me dizendo que o Coro do Teatro Municipal          do Rio de Janeiro é antigo e sempre teve um alto nível artístico.          Quanto às declarações que saíram na imprensa          sobre o relacionamento do Coro e o Gerald Thomaz, afirma que não          existe, de verdade, qualquer espécie de desagravo. "Ele é          uma pessoa muito simpática, de fácil relacionamento. Se          por acaso há pessoas no Coro que não concordam com seu jeito          de trabalhar, ou sua concepção de espetáculo, é          um problema subjetivo". Silea acredita que ao Coro compete interpretar          da melhor maneira o que o regisseur pedir, não compete julgar a          concepção do espetáculo. Gostar ou não, vai          ficar por conta do público. Inclusive, tudo é relativo:          há pessoas que vão gostar, outras não. Ela admite          que houve problemas, mas de falta de tempo de ensaio como gostariam e          isso por uma série de circunstâncias, entre as quais, o fato          de terem sido impedidos de realizar ensaios, já que uma ala do          teatro estava em obras.
          Quando à sua performance nesta montagem: é a primeira vez,          em treze anos, que cantava O Navio Fantasma e lamentava que não          se fizesse, como antigamente, mais óperas e que a temporada de          ópera não fosse tão intensa quanto poderia ser. Meio          soprano, Silea cantava há 17 anos na ocasião, tendo protagonizado          a Carmem de Bizet e o papel feminino mais importante da ópera de          Werther de Massinet. "Nosso interesse é ver o Teatro Municipal          trabalhando a todo vapor, ocupando seu verdadeiro espaço, trazendo          para o público do Rio de Janeiro, uma arte de maior qualidade".
          E afinal, tudo isso, e a matéria não sai:
          estamos no Rio de Janeiro
          Depois de ter feito uma das mais gostosas matérias da minha vida,          imaginem meu horror, quando ao levar a dita cuja para o editor da Manchete,          que a encomendara, fico sabendo que ele queria, afinal, só uma          entrevista com o Gerald Thomaz. Digamos que a matéria estava de          fato muito longa, mas em todo caso, fiz cortes ali mesmo na redação          e deixei oito laudas com a entrevista do Gerald. Alguns dias depois, vejo          que na edição em que ela deveria estar, havia uma outra          intitulada Senta que o Gerald é manso.
          Fiquei arrasada, imaginem a minha cara com todo o elenco, o Gerald, Daniela,          e todos entrevistados, que eu adorei conhecer. Foi duro, fiquei com uma          péssima imagem da imprensa carioca, que sobre o mesmo espetáculo,          publicou naquele O Dia, matéria intitulada Não vi e não          gostei. Pois o que posso dizer é que vi e não gostei da          ideologia da imprensa carioca. Aliás, este fato, com mais detalhes,          conto na matéria publicada no Cronópios: Ai Love Rio ou          Ai de Ti Copacabana. É isso, mas e daí? Que fazer? A vida          tem dessas coisas, companheiros.
Jornalista Ana Lucia Vasconcelos
Web designer-Edson Souza
 
 
 
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