sábado, 9 de fevereiro de 2013

Gerald Thomas entrevista Judith Malina

 (Especial para a Folha de São Paulo)
São Paulo, sábado, 04 de outubro de 2008
   
 

“Temos de rir”, diz Judith Malina


Diretora do Living Theatre vem ao Brasil receber medalha por reparação pelo fato de ter sido presa durante a ditadura

Além da homenagem, Malina também dará aulas para atores na Casa das Artes de Laranjeiras, no Rio de Janeiro  
Fabiana Guglielmetti
 
Judith Malina, diretora do grupo Living Theatre, que estreou peça baseada em Edgar Allan Poe em Nova York, durante entrevista
GERALD THOMAS
ESPECIAL PARA A FOLHA
Confesso que meus joelhos estavam trêmulos quando o “yellow cab” me deixou na esquina da East Houston com Clinton Street, em Nova York. Andei alguns passos, e tomei fôlego para ir até os “headquarters” do Living Theatre. Vi a preparação de “Eureka”, adaptação de texto de Edgar Allan Poe que estreou nesta semana no espaço do grupo, e subi ao segundo andar, onde mora Judith Malina, sua diretora. O Living Theatre foi um dos grupos de teatro mais influentes do mundo. Sem a filosofia deles, não teríamos hoje o Oficina, no Brasil (leia ao lado). Sim, é triste sim, porque a última vez em que nos vimos, em maio, ela estava deitada numa esteira no meio da sala, dezenas de pessoas ao redor. Seu companheiro de 40 anos, Hanon Reznikov, havia morrido no dia anterior. Eu tinha ido ao enterro em Paramus, Nova Jersey. Ela nos olhava como se seu mundo fosse acabar ali. O mundo da última beat iria acabar sem deixar um último berro, um último manifesto: Hanon morreu abruptamente, de um derrame, aos 57, de repente. Durante o enterro, eu não parava de olhar pra essa jovem alemã pequena, de 82 anos, que também me olhava e cochichava em meus ouvidos “What went wrong, Gerald?” (O que deu errado, Gerald?). Ambos olhávamos o caixão em que o corpo de Hanon cozinhava num calor de 32ºC e meus olhos iam pra tumba de Julian Beck (1925-1985), o primeiro marido de Judith, líder e fundador do Living Theatre, também enterrado ali. Eu estava no enterro do Julian em 1985. Ele morreu durante a turnê de um espetáculo meu, a “Beckett Trilogy”, em que atuou, pela primeira vez fora do seu Living. Beck e Beckett, onde um homem ouvia sua própria voz em três fases diferentes de sua vida no passado. As filas no La MaMa davam voltas no quarteirão: o povo sabia que ele estava com câncer terminal. Eu fazia o meu meta-teatro e eles vieram dizer o seu adeus. Um homem quase morto ouvindo vozes do passado: era de levantar a pele! Na semana passada, subindo as escadas pro apartamento, depois de seis meses sem vê-la, encontrei-a bem humorada, às vezes aos prantos, jovial, energética e divertida. Levantou num pulo. Algumas várias lágrimas durante a entrevista. Judith Malina receberá a Ordem do Mérito Cultural do Ministério da Cultura brasileiro na próxima terça, em cerimônia a ser realizada no Teatro Municipal do Rio, com a presença do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e do ministro da Cultura, Juca Ferreira. Em 1971, membros de seu grupo foram presos acusados de participar de atividades subversivas. Leia abaixo trechos da conversa com Malina.
 
JUDITH MALINA – Ainda não posso ser deixada sozinha. Nunca fui deixada sozinha desde o Julian, que me colocava três refeições por dia na mesa… Não sou bipolar, mas sou exagerada, você me conhece, tenho energia demais e preciso exercitá-la
GERALD THOMAS – Mas todos te vêem como uma super-mulher. A batalhadora, quase invencível.

MALINA
– Que nada. Sou inútil pra coisas práticas. Não sei lidar com coisas reais, atender um telefone, nunca precisei escrever um cheque, não sei o que é uma conta de luz.
THOMAS – E o espetáculo, “Eureka”?

MALINA
– Estamos fazendo essa produção com garra e com zero tostões.
THOMAS – Mas com vocês foi sempre assim…

MALINA
– Mas agora vendemos todas as pinturas de Julian e não sei como continuar. Você sabe que as coisas pioraram no mundo do teatro.
THOMAS – Nem me fale!

MALINA
– Aqui e no mundo inteiro. Precisamos berrar mais do que nunca. Ou seremos enterrados vivos. Estou indo pro Brasil receber uma medalha de honra de reparação de danos. Gosto muitíssimo do Brasil. Aliás, é o país de que mais gosto. Brasil primeiro, Itália depois e, sei la qual é o terceiro.
THOMAS – Você vai dar workshops na Casa das Artes de Laranjeiras…

MALINA
– Porque sinto que os atores brasileiros têm fome de saber. Te abraçam com tudo e se jogam sem medo. Nos outros lugares estão com muito medo. Eu sou sobrevivente de guerra e me pergunto: “medo de quê”?
THOMAS – Te conto: ator hoje tem medo de falar de como perdeu a virgindade, a caretice é enorme. Crêem que a história começou ontem.

MALINA
– Não que sejamos nostálgicos. Mas existe uma geração que deletou ou não absorveu toda uma cultura de demonstração, de contracultura, de agitprop. Por isso quero escrever meus diários e o que Erwin Piscator me ensinou.
THOMAS – Uma condecoração no Brasil substitui o tempo que você ficou presa?

MALINA
– Nada vai tirar aquilo da minha memória. Foi horrível, por isso esse diário da prisão é importante (leia ao lado).
THOMAS – No início da década de 60, o teu teatro revolucionou o mundo. Na década de 70, você estava confinada numa prisão em Minas Gerais. Hoje, você tem liberdade para viajar e berrar. Mas adianta?

MALINA
– Quero abraçar o mundo com as pernas, com os braços. Amo tudo isso, amo estar viva e percebo que o mundo inteiro é um fracasso. Temos de rir.
 GERALD THOMAS é autor e diretor teatral 

    Judith Malina e Gerald Thomas 
   

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